So, why I need the ship?
Ontem, eu que nunca consegui medir a precisão de um olhar que seja, o meu no espelho depois de acordar, o seu quando mentia pra mim, o do cachorro bonitinho da minha priminha, que toda vez que vou me encontrar com o pai dela pra uma ou duas doses, vem latindo no seu colo e abanando o rabo. Ou até mesmo o do meu pai, depois de me bater por ter derrubado a patinadora do Carrefour. Todas essas e mais inúmeras outras situações, incluindo aí a minha falta de destreza com as medições. Do tipo, a distância que separa a parede em que fica encostada a cama, da parede que sustenta o móvel com a televisão. Tudo isso foi do ralo ao destino que essas coisas que lá se enfiam, toma.
Ontem, num percurso de trinta quilômetros, que separava o lugar em que me encontrava da minha então atual estada, contei exatamente todos os semáforos, todas as bolinhas verdes, amarelas e vermelhas de todos esses sinais de trânsito pelos quais passava. Enumerei de modo a deixar explícito e completamente compreensível para quem depois queira se ocupar do meu labor, cada bolinha (se aquilo não é exatamente uma bola, perdoe minha ignorância) daquilo que o pessoal chama de tartaruga e que formam as rótulas de trânsito. Para que você não fique perdido depois, eu escrevi quais eram as ruas e ou avenidas que cruzavam os blocos de concreto.
Ocupei-me também de contar quantas vezes troquei de marcha e qual delas foi a mais utilizada. Quantas vezes reduzia a velocidade e meus medos na hora em que reduzia. Quantos motociclistas. As cores dos capacetes. Se tinham adesivos ou se não. Se usavam calça jeans ou pilotavam de bermuda. Quantos ciclistas e inclusive, nessa parte eu anotei a marca do quadro, se ali perto do guidom elas possuíam o que lá em Catalão eu aprendi a chamar de mesinha.
Deixei devidamente anotado quantas vezes virei à direta e à esquerda e em quais ruas tinham mais carros estacionados do meu lado ou do passageiro e se também tinham veículos parados em local proibido. Contei 19 automóveis com vidros abertos, 13 com as janelas até a metade e dois sem o vidro do fundo, que não lembro o nome agora.
Precisei quantas setas dei e as vezes em que não me lembrei delas também.
Ao chegar à rua em que moro, contei quantos carros estavam com seus donos presentes em algum local próximo deles e apertei o botão do controle do portão três vezes até tirar a capinha e apertar direto na pilha pra poder guardá-lo na garagem.
Entrei e estacionei como de costume. Fui em direção ao elevador, esperei 45 segundos, abri a porta e percebi que no espelho do elevador tinham 25 sinais de pus, de gente dessas que quando entram lá dentro ficam se espremendo. Tinha bastante grão de caspa no chão também, mas como eu moro no primeiro andar não tive tempo de contar. No mínimo umas quatro pessoas iriam apertar o botão nesse intervalo de tempo e eu não queria atrasar a vida deles.
Ao descer, vi que as luzes da frente dos meus dois vizinhos estavam ligadas, a de minha casa não. Entrei sorrateiro pra não acordar ninguém que estivesse dormindo. Foi tudo em vão. Ao entrar no meu quarto e deixar o tênis em baixo dos meus pés erguidos e encostados na parte debaixo da bi-cama, minha mãe abriu a porta e perguntou por onde eu andava. Disse que não sabia muito bem. Tinha me esquecido no meio do caminho. Mas que não tinha acontecido nada de errado. O nível da gasolina estava no local exato em que tinha pegado e que no caminho do local em que eu estava até em casa tinha contato 12 postos de gasolina e uma quantidade de frentistas que ela nem quis ouvir. Saiu do quarto falando que eu tinha ganhado um navio num concurso.
Na hora não me veio em mente que maldito concurso era esse. E porque diabos eu precisaria de um barco gigante em Goiânia.